Conscientização da Dor
O marca-passo do sistema nervoso é usado para modular as reações nervosas inadequadas causadas por diversas doenças. Por exemplo, quando a conscientização da dor é contínua e insistentemente processada pelo sistema nervoso central, apesar do fator agressor ter sido tratado, podemos minimizar esse processo patológico com neuromodulação. O marca-passo cerebral pode reajustar o reconhecimento anormal da dor, tornando-a tolerável por gerar uma sensação prazerosa no local da dor e/ou um bem estar geral. A dor é o principal alarme que temos contra agressões ao nosso corpo. A dor não só nos informa sobre agressores físicos externos, como o fogo ou um instrumento afiado em nossa pele, mas também contra agressores internos, como uma infecção, um tumor, uma fratura óssea, uma obstrução nas vias urinárias, intestinos, vasos sanguíneos ou uma compressão de nervos ou músculos.
Dores corriqueiras como dor de cabeça, dor muscular generalizada, dor lombar antes inexistente, ou até piora de certa dor que já sabíamos conviver com ela, podem nos alertar sobre o início de um processo infeccioso concomitante, por exemplo. A dor pode salvar nossa vida no caso da obstrução vascular que causa um ataque cardíaco, avisando que devemos ir para hospital imediatamente. A dor é o sistema de proteção mais robusto que temos, sendo persistente quando a causa da dor não é possível de ser controlada. Nossa mente está sempre ligada através da dor para saber o que está acontecendo em qualquer local do corpo, levando-nos imediatamente a nos proteger. A dor do “membro fantasma” é um excelente exemplo da preocupação constante do nosso cérebro em saber o que está acontecendo em uma parte do corpo que já foi amputada. É uma dor constante e intensa que só melhora quando conseguimos tratar esta “preocupação” nervosa central involuntária devido ao trauma inicial que resultou na amputação do membro. A modulação dessa circuitaria que está funcionando de maneira anormal é possível com o marca-passo cerebral. O mesmo ocorre com a dor central causada pelo acidente vascular cerebral (AVC) em áreas cerebrais destinadas à avaliação de estímulos externos.
Esta função intrínseca e protetiva da dor pode, no entanto, causar sofrimento e ansiedade devido à cronicidade do quadro. A dor aguda nos protege como, por exemplo, para tirar a mão do fogo, corrigir uma fratura, uma obstrução intestinal, ou qualquer um dos nossos agressores internos para que a dor cesse. Medicações e tratamento adequado e definitivo da causa da dor sinalizam ao cérebro que a situação está controlada. Com isso, a conscientização da experiência dolorosa cessa de existir. Quando não é possível remover a causa da dor, ela torna-se crônica e causadora de um sofrimento intenso. Essa remodelação de mecanismos centrais envolvidos no processo da informação de dor (neuroplasticidade secundária) acarreta dificuldades psicológicas e psiquiatrias sérias, até ao suicídio. A dor crônica passa a ser parte da vida da pessoa, moldando suas personalidades com características de angústia, impaciência, dificuldade de concentração e relacionamento social e familiar. A capacidade de trabalhar é afetada, levando à depressão e desajustamento social, torna-se um ciclo vicioso que precisa ser interrompido. Essas transformações na conectividade cerebral podem ser controladas com medicações e cirurgias no intuito de mitigar a dor, mas dificilmente em extingui-la por completo. O efeito no humor e sociabilidade se fazem sentir com a melhora do controle da dor.
Fatores Causais e Indicação do Marca-Passo da Dor
Fatores causais de dor que não podem ser removidos como tumores infiltrativos, dinâmicas vertebrais sem uma solução cirúrgica que levam à compressão constante de nervos, lesões de nervos periféricos e até lesões do sistema nervoso central, como acidente vasculares cerebrais, tumores e traumatismos podem acarretar a chamada dor neuropática. Geralmente as medicações analgésicas comuns falham no controle da dor neuropática; adicionam-se então medicamentos que tem efeitos colaterais sedativos, na tentativa de bloquear este maravilhoso sistema de proteção que temos e que está disfuncional. Com a cronicidade da dor, os antidepressivos tornam-se necessários, mas o sistema protetivo da dor continua trabalhando de maneira aberrante para nos alertar que algo existe errado em nosso corpo. As medicações que sedam cérebro, bem como os antidepressivos tendem a falhar em uma percentagem importante dos pacientes, ou causar efeitos colaterais que embotam de maneira inaceitável o paciente, afetando sua convivência com familiares e colegas de trabalho. Este é o momento em que cirurgias direcionadas para modular o contexto dramático causado pela dor crônica tornam-se necessárias.
Efeito do Marca-passo para Dor
Existem três locais que podemos modular com o marca-passo instalado no sistema nervoso para controlar a dor crônica. Estes locais são abordados somente quando o as medicações e as cirurgias direcionadas a causa da dor falharam. Estas são por exemplo, remoção de um disco vertebral herniado, extirpação de um tumor que comprime nervos, correção de uma fratura ou the uma obstrução de vias intestinais ou renais. Quando estes recursos falharam, temos que acessar com o marca-passo uma das seguintes vias nervosas periféricas ou centrais do sistema nervoso responsáveis pelo reconhecimento da dor.
1. Sistema sensitivo
2. Sistema das endorfinas
3. Sistema que conscientiza a dor
O primeiro, o sistema sensitivo, pode ser bloqueado com estimulação elétrica ou quimicamente, usando os impulsos elétricos do marca-passo ou drogas através de bombas de infusão. Estes agentes podem impedir que a mensagem dolorosa atinja nossa consciência. Isto é, bloqueando o estímulo doloroso antes que ele avise o cérebro da existência do agente agressor. O bloqueio elétrico pode ser aplicado em um nervo periférico, na medula espinhal ou nas vias cerebrais que integram a informação dolorosa no cérebro. O segundo mecanismo de ação dos marca-passos é modulando neurotransmissores, endorfinas, levando a uma sensação prazerosa. Estimulação elétrica nestes locais levam à um bem-estar geral, tratando a ansiedade que naturalmente acompanha a dor crônica. O terceiro e último seria usar os estímulos elétricos gerados pelo marca-passo cerebral para impedir a conscientização da dor a níveis de interpretação de sua existência. Embora exista um reconhecimento do estímulo doloroso, este não causa ansiedade nem desejo ao paciente de proteger-se. (Figura)
Impulsos Elétricos
Marca-passos geram impulsos elétricos que modulam nosso cérebro, uma vez que este é um computador extremamente complexo e eficiente. É composto do sistema nervoso periférico, o conjunto de nervos (“fios elétricos”), que trazem as informações ao sistema nervoso central (“computador”). Através de uma rede eletroquímica, o cérebro dissemina estas informações ao nosso intelecto. Este integra sentimentos e memórias na conscientização da dor. Quando o agressor é periférico, direcionamos os estímulos gerados pelo marca-passo para bloquear os nervos periféricos. Quando já está ao nível da coluna vertebral, temos que dirigi-los à medula espinal. Quando a lesão afeta além dos nervos periféricos e da medula espinhal temos que modular o sistema nervoso central, bloqueando as vias intrínsecas do cérebro, tanto as vias sensitivas como as vias emotivas afetando a transmissão elétrica e/ou neurotransmissores.
Marca-passos Inteligentes
Os marca-passos cerebrais, antes apenas geradores de estímulos elétricos, hoje tornam-se inteligentes, capazes de ajustar às necessidades do paciente automaticamente, ou aos comandos do próprio paciente. Podem estimular ciclicamente, receber informações para atuar em momentos necessários com intensidade, frequência e durações de pulsos pré-programadas. O paciente tem a liberdade de modificar os programas pré-definidos pelo neurocirurgião, pois o paciente é o real conhecedor das limitações impostas por sua dor.
A dor crônica foi o primeiro sintoma neurológico a ser controlado por marca-passos implantáveis no sistema nervoso, já há mais de quarenta anos. Hoje os marca-passos são adjuntos ao cérebro para controlar as mais diversas doenças. São computadores que auxiliam o paciente nos momentos mais difíceis de doenças complexas como epilepsia, mal de Parkinson, tremor essencial, distonia, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), depressão, dor crônica, doença de Alzheimer, doenças inflamatórias, paralisias, zumbidos e uma gama de novas aplicações que aumentam na medida que entendemos melhor o funcionamento cerebral. O tratamento de algumas das condições listadas acima ainda é considerado experimental, enquanto para outras doenças, o marca-passo cerebral é um tratamento convencional, utilizados há décadas, com mais de 150 mil pacientes implantados no mundo, atestando pela robustez e segurança do procedimento.
Bombas de Infusão para controle da Dor Crônica
A dor crônica causada pelo câncer avançado originando dor oncológica severa, pode ser paliada com infusão de medicações no líquido que banha o sistema nervoso central, o líquido cefalorraquidiano (líquor). Este pode ser atingido quando banha a medula espinhal ou o cérebro. As medicações analgésicas infundidas no líquor atuam diretamente nas células e vias nervosas bloqueando a dor, evitando-se assim efeitos colaterais que ocorreriam quando infundidas por via endovenosa. Medicações infundidas na veia (endovenosa) ou ingeridas por via oral atingem indiscriminadamente todos nossos órgãos, mesmo os não relacionados com a dor do paciente. Essa falta de seletividade ao administrar a medicação pode causar efeitos adversos e indesejados. Por exemplo, doses muito altas podem ser necessárias para controlar uma dor na região da bacia, quando esta está infiltrada por um tumor, levando a uma sedação completa do paciente. Isto pode ser evitado infundindo-se a mesma droga no líquor da região lombar em diminutas doses, de maneira contínua, sem afetar o cérebro e outros órgãos como intestinos, etc. As medicações infundidas, mesmo em diminutas doses, tendem a perder o efeito com o tempo, por isto as bombas de infusão são em geral reservadas para o tratamento da dor crônica por causas oncológicas, em pacientes com longevidade curta e necessitando de cuidados paliativos. Pacientes em que a causa da dor crônica é de natureza benigna, sem ameaça à longevidade, beneficiam-se mais com os marca-passos do que com a bombas de infusão. Marca-passos oferecem maiores possibilidades de programação para controlar a dor, sendo ajustados durante a vida do paciente, representando portanto uma medida bastante duradoura.
Bibliobrafia
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